Eu não sou o meu trabalho

inna & co
5 min readSep 29, 2020
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Um bom funcionário veste a camisa, trabalha no final de semana e não deixa de responder mensagens a noite. O chefe agradece, usa como exemplo e de repente esse é o padrão. Os limites de vida pessoal e profissional se misturam e não existe mais tempos dedicados a exclusivamente a cada um… porque o trabalho tomou conta de toda a sua vida!

Se identificou? Se não se identificou você me desperta dois sentimentos: felicidade, caso você saiba a importância de delimitar os espaços de vida pessoal e realmente ponha em prática; preocupação, caso sua imersão em trabalho seja tão grande que você não consiga enxergar o que está fazendo com a sua vida (eu já estive nesse lugar e é isso que eu vou te contar hoje).

Atenção: esse relato contém gatilhos pra diversos transtornos mentais.

Eu trabalhava em uma consultoria que só tinha clientes enormes: LATAM, Magazine Luiza, Via Varejo, Monsanto, Grupo Pão de Açúcar, etc. Eu não era só designer gráfico lá… eu CONSTRUI a área de criação, criei cada tipo de material gráfico que entregávamos, contratei pessoas pra minha equipe, me tornei coordenadora da área, participava de reuniões nos clientes onde não poucas vezes estava presente o VP. Eu ganhava o dobro do que os meus colegas da área ganhavam, sem contar o bônus de final de ano. Eu era bem sucedida né?

Eu trabalhava no mínimo 12h por dia… porque eu tinha muitas responsabilidades, meu trabalho era muito importante, a entrega pro cliente dependia de mim, né? Eu virava MUITAS noites… porque construir uma carreira é assim, precisa de muito esforço né? “Rapadura é doce mas não é mole não!” Eu trabalhava todo final de semana… porque eu era comprometida, vestia a camisa da empresa e queria chegar lá!

Essas eram as justificativas que eu me dava pra continuar naquele ritmo obsessivo. Eu já tinha perdido totalmente a noção do que é aceitável, principalmente porque TODO mundo na empresa sabia o ritmo frenético que eu trabalhava e ninguém reagia, era tratado como normal.

É óbvio que eu sentia os efeitos da vida que eu levava:

  • eu não sabia mais o que era não sentir cansaço… eu me sentia cansada o tempo todo!
  • eu tinha crises de choro por me sentir esgotada
  • minha produtividade estava caindo a cada dia por falta de foco e concentração
  • tarefas comuns e simples do dia-a-dia me exigiam muito… parecia que eu estava fazendo em câmera lenta, mesmo dando o máximo de mim
  • eu estava extremamente irritada o tempo todo, brigando com tudo e com todos, tendo reações completamente exageradas

Mas eu ignorava. Eu queria provar que eu conseguia fazer o meu trabalho, apesar de no fundo eu saber que não dava mais conta.

Só que o corpo humano é muito inteligente e eu aprendi a duras penas que ignorar os sintomas psicológicos leva a sintomas físicos, e passei a ter:

  • enxaquecas (coisa que eu NUNCA tinha tido)
  • taquicardia repentina junto com dificuldade pra respirar
  • enjoos
  • mãos suando

E foi assim, quando começaram essas crises de ansiedade que eu tive a primeira, de muitas conversas com a minha chefe (várias delas aos prantos – eu não conseguia controlar – e cheguei a falar “eu não aguento mais, o meu corpo não aguenta mais”). Ao contrário do que vocês possam estar pensando, ela não me ajudou. Ela falava comigo como se eu fosse dramática, estivesse de frescura, fazendo um grande mimimi. O trabalho era assim e ponto. E inclusive, os donos da empresa esperavam mais de mim… o quanto eu trabalhava já não me rendia mais aumento… se eu quisesse crescer, eu precisava dar mais de mim.

Até que um dia eu não consegui sair da cama. Eu simplesmente não consegui sair da cama porque nada mais fazia sentido e eu não aguentava mais – literalmente. Eu não sabia o que fazer, o que procurar porque eu não conhecia ninguém que tivesse passado por aquilo… eu me sentia um fracasso.

Minha mãe conseguiu pra mim um encaixe com uma psicóloga e a bomba veio: você está com depressão, e não é leve, procure um psiquiatra. Psiquiatra… aquilo pesou pra mim porque psiquiatria é um tabu cheio de estigmas na nossa sociedade. Eu achava que só transtornos mentais como esquizofrenia ou coisas do tipo exigiam psiquiatria. E se eu já estava achando tudo ruim, mal sabia que ficaria ainda pior: burnout e síndrome do pânico, a depressão é consequência. Você precisa se afastar do trabalho por tempo indeterminado.

Eu fui emendando um afastamento no outro, por meses, até concluir com ajuda de muita terapia que aquele ambiente de trabalho era tóxico pra mim. Que eu não iria melhorar enquanto o meu horizonte fosse voltar pra lá. Resolvi então pedir demissão. E não, esse não é o momento da virada perto do final feliz.

Eu tinha a ilusão de que depois de tanta dedicação e que com os atestados médicos, eu conseguiria um acordo financeiro pra me manter durante o meu tratamento. Eu precisava daquela ilusão, porque foi aquela ilusão de ser reconhecida que me fez trabalhar durante tanto tempo daquele jeito, eu achei que estava construindo algo JUNTO com eles e eles me valorizariam. E no momento que essa ilusão foi rasgada eu fiquei vulnerável, em carne viva.

A minha única medida de autoestima era o trabalho. Eu não sabia quem eu era, senão a Natália profissional, e de repente aquilo não tinha valor nenhum. Eu não tive o reconhecimento e nem poderia buscar o reconhecimento. Foi nesse momento que a vida deixou de fazer sentido pra mim.

Eu precisei de uma internação psiquiátrica, terapia e muitos remédios pra acabar com os pensamentos suicidas e entender que eu não sou o meu trabalho e minha vida não pode ser o meu trabalho.

É preciso descanso sim. É preciso delimitar espaço pra vida pessoal sim. É preciso parar de exaltar o workaholic.

Não ter tempo livre não é sucesso. Virar a noite trabalhando não é glamouroso. Não atender ligação de trabalho ou não responder email de noite, de madrugada não é falta de compromisso. “Ter sangue no zóio” não é descrição de vaga.

Nós não somos máquina de alta produtividade. Precisamos de descanso, de vida social, de hobbies, de tempo pra autocuidado e autoconhecimento.

Desacelere… só assim você pode ir mais longe. Devagar também é pressa.

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inna & co

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